- Com estoques baixíssimos, unidades de saúde suspendem cirurgias oncológicas e cardíacas para garantir sedativos e bloqueadores neuromusculares para pacientes graves intubados com Covid-19
- CMB recorre a Ministério da Saúde e Anvisa para facilitar importação de medicamentos, insumos e denunciar preços abusivos
- Médicos e administradores da área da saúde suplicam por apoio da população
Natália Oliveira
A pandemia de Covid-19 tem trazido uma série de dificuldades para os hospitais do país na luta constante para salvar vidas. Neste momento, um dos maiores desafios está sendo a aquisição de medicamentos do chamado kit intubação, composto de anestésicos, sedativos e bloqueadores neuromusculares. Desde fevereiro, a situação é dramática: os fabricantes não conseguem produzir o volume suficiente para atender a imensa demanda do mercado e os fornecedores têm vendido os medicamentos com sobrepreços assustadores. A falta de sedativos e bloqueadores neuromusculares impossibilita a intubação dos pacientes, que sem o auxílio da ventilação mecânica perdem a chance de sobreviver, indo a óbito por insuficiência respiratória.
Além de impossibilitar a intubação de pacientes que chegam aos hospitais em estados mais graves, a falta desses medicamentos também impede a manutenção dos pacientes que estão intubados nos respiradores. Os sedativos são responsáveis por levar o paciente a um estado de coma induzido, fazendo com que o processo de intubação, ou seja, a colocação do tubo que vai da boca até o pulmão, seja feito de forma não traumática. Já os bloqueadores neuromusculares são essenciais para que o respirador possa assumir o lugar dos pulmões, sem encontrar resistência do organismo.
De acordo com o presidente da Femerj, Marcelo Perello, a dificuldade para adquirir os medicamentos é grave e muito preocupante em todo o país e está levando o sistema de saúde ao colapso. Segundo Marcelo, quando olhamos para as unidades de saúde do interior dos estados, para hospitais filantrópicos e Santas Casas a situação é ainda mais séria:
“Hoje a gente vê que principalmente as instituições que não fazem parte de grandes redes de hospitais estão sofrendo muito com isso. As unidades mais isoladas são as mais atingidas, porque com o cenário de escassez os laboratórios e fornecedores estão dando preferência para grandes compradores. Acontece que no interior do estado do Rio, por exemplo, as santas casas e hospitais filantrópicos são responsáveis pela maior parte do serviço hospitalar que existe, sendo muitas vezes os únicos a atender pacientes com a Covid-19. Esses municípios estão sofrendo muito pela falta desses medicamentos”, afirmou Marcelo.
Muitos hospitais afiliados à Femerj estão vivendo esse drama e sendo obrigados a suspender cirurgias que dependem de anestesia geral para preservar o estoque para os pacientes mais graves. Cirurgias oncológicas e cardiovasculares estão sendo suspensas. O Hospital Santa Izabel de Cabo Frio é um exemplo de unidade de saúde que tem enfrentado diariamente esse desafio. Com 100% dos leitos de UTI dedicados à Covid-19 ocupados, a administração da unidade tem corrido atrás do “kit intubação”, mas não tem recebido respostas. O provedor do Hospital, Helcio Simas de Azevedo, afirmou que o estoque está muito baixo e que a última compra que conseguiu fazer só deve durar mais uma semana. Segundo o administrador, que também é médico, o risco dos medicamentos faltarem é uma realidade, mesmo com a suspensão das cirurgias eletivas.
“A gente tentou fazer uma compra direto na fábrica, ficaram de dar uma resposta para a gente, mas ainda não deram. Se esses medicamentos faltarem, os pacientes vão ter que ser amarrados e os que estão intubados podem acordar. Dá para imaginar? Está difícil adquirir esses medicamentos primeiro pela falta, segundo pelo preço exorbitante que algumas fornecedoras colocam. Mais de 1500% de aumento? Virou leilão: quem dá mais, quem chegar primeiro, compra”, desabafou Azevedo.
Além de estar tentando comprar direto da fábrica, o Hospital Santa Izabel já enviou um comunicado ao Ministério Público, reportando a situação e já informou também as secretarias Municipal e Estadual de Saúde. “A gente está segurando dessa maneira. Evitando qualquer gasto desnecessário desses medicamentos com qualquer outro tipo de cirurgia para sobrar para os pacientes intubados”, explicou o diretor. Helcio também reforçou que esse problema para compra de medicamentos e insumos foi a maior dificuldade dos hospitais filantrópicos durante toda a pandemia.O provedor do Hospital Santa Izabel de Cabo Frio deixa um apelo à população:
“Mesmo como provedor do hospital, como médico, com um bom plano de saúde, se eu me reinfectar hoje, não tenho vaga no próprio hospital que eu dirijo. Então a coisa é muito grave. Não tem o que fazer: é vacina, é máscara, é higienização. Se a população não ajudar não tem o que ser feito. Eu ando pelas ruas e vejo um monte de gente sem máscara, nem aí para a doença, a juventude nos bares. Se a população não ajudar, não ficar em casa e quem tiver que trabalhar usar a máscara e álcool em gel, não temos mais o que fazer. Não temos mais leito de UTI, não temos como aumentar o número de leitos para atender a toda a população. Ou as pessoas entram junto nessa luta, ou não tem o que fazer” – Helcio Azevedo.
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Importação de medicamentos e insumos: uma saída possível
A dificuldade para a aquisição dos medicamentos que compõem o chamado “kit intubação” começou a aparecer entre outubro e novembro de 2020, mas se agravou mesmo em fevereiro deste ano, depois do carnaval. Como já falamos, as razões para a falta das substâncias são principalmente duas: a falta de insumos e o sobrepreço que os fornecedores e distribuidores estão colocando nos produtos. A Confederação das Santas Casas e Hospitais Filantrópicos (CMB) tem atuado junto ao Ministério da Saúde e às federações de cada estado para tentar solucionar o problema o mais rápido possível.
Um dos caminhos é a importação dos medicamentos. Para isso, a CMB fez um levantamento entre as Santas Casas e Hospitais Filantrópicos para saber do interesse e das condições dessas instituições formarem um grupo para adquirir sedativos e bloqueadores neuromusculares de fornecedores de confiança no exterior. O vice-presidente da Confederação, Flaviano Ventorim, explicou que a ideia é fazer volume para facilitar a compra e dar suporte aos hospitais interessados, que muitas vezes não têm experiência nesse tipo de transação, que envolve uma certa burocracia junto a Receita Federal.
“Esse caminho da importação é um dos possíveis, mas além das questões burocráticas, também encontramos algumas dificuldades porque esse tipo de compra precisa ser paga de forma antecipada e muitas instituições não têm o valor disponível à vista para pagar por essa importação”, destacou Flaviano.
Outra frente que está sendo trabalhada é o diálogo direto com os fabricantes nacionais, para tentar que eles consigam retomar as vendas. Neste caso, apesar do interesse de ambas as partes, os fabricantes têm baseado sua produção na média de consumo histórica desses medicamentos, que não reflete mais a realidade da demanda do mercado nesse momento da pandemia. O vice-presidente da CMB afirmou que as médias de consumo dispararam, porque o número de casos da covid e o agravamento desses casos cresceram de forma exponencial.
“No hospital onde eu trabalho a gente usava em média 400 ampolas de rocurônio, tipo de bloqueador neuromuscular, por mês em março de 2020. Em novembro de 2020 a gente já estava usando 2600 ampolas no mês. Agora, nos últimos 30 dias, utilizamos 5600 ampolas. Isso se deve ao aumento da demanda, a necessidade de abertura de mais leitos e também ao aumento da gravidade do atendimento: mais pacientes precisando ser intubados”, exemplifica.
A CMB tem notado que nos últimos 15 a 20 dias, a situação tem ficado ainda mais desesperadora e vários hospitais têm sinalizado estoques muito baixos, sem perspectivas de conseguir receber os medicamentos. Algumas unidades de saúde estão conseguindo receber dos governos estaduais, que têm ajudado os hospitais que foram incluídos nos Planos de Contingência. Mas mesmo com esse apoio os estoques estão muito abaixo do normal, gerando medo e apreensão.
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Para ajudar os fornecedores a aumentarem a produção, a Confederação e o Ministério da Saúde também têm agido para tentar facilitar a importação dos insumos necessários para que os medicamentos sejam produzidos aqui no Brasil. “Estamos em contato com a indústria, que quer voltar a produção mas não tem insumos. Por isso, pedimos que a Anvisa facilitasse a entrada desses insumos e também de medicamentos importados em caráter emergencial. Nos últimos dias a Anvisa já expediu novas orientações que devem agilizar um pouco esse processo, mas ainda há algumas observações que são um entrave. Uma delas é a regra de não poder emprestar medicamentos, que é um processo de socorro, comum entre os hospitais em momentos críticos”, explicou Flaviano, que também pediu ajuda da população para ajudar os hospitais a continuarem salvando vidas:
“Eu preciso pedir o apoio da população. Enquanto a população não estiver vacinada, o único caminho é a prevenção. Prevenir a Covid-19 é muito melhor e mais barato do que tratar a doença. O tratamento é muito duro, muito complicado A gente precisa de um comprometimento de todos nessa luta. Não dá para sempre que chegar um feriadão os casos explodirem e só quando a pessoa precisar de um leito e não encontrar se dar conta da gravidade da situação. Aí a solução parece simples: abrir mais leitos. Mas isso não tem mais como acontecer, não é nada simples. As pessoas precisam colaborar para que os hospitais possam trabalhar” – Flaviano Ventorim.
Preços Abusivos
Sobre o problema do sobrepreço, principalmente em cima de sedativos, anestésicos e bloqueadores neuromusculares, reportado por muitos hospitais, a CMB vai encaminhar à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) o nome das empresas que estão adotando essa prática.
Para que isso seja possível, a Confederação solicita que as Santas Casas e os hospitais filantrópicos denunciem a precificação abusiva de seus fornecedores, enviando à CMB cópias dos documentos que comprovem a ação: propostas apresentadas por cada uma das empresas participantes da licitação; notas fiscais; e/ou documentos que comprovem a existência de contrato firmado entre empresa produtora de medicamentos e distribuidora que verse sobre a concessão de direitos exclusivos sobre a venda.
Essas denúncias podem ser enviadas até amanhã (14/04) para o e-mail: [email protected].
Juntos somos mais fortes!